Por Eliza Peixoto / fotos antigas do acervo de Luis Góes / colaboração de Renato Reis
No início do seculo XX, chegava a Belo Horizonte o português Avelino de Sousa Vieira em busca de uma nova vida para a família. Dois anos depois, com ele já morando no local que viria ser Santa Tereza, chegaram a esposa Florinda Pereira de Sousa e três filhos. Comprou um lote de 600m2, com um barracão no fundo, no que era a então uma empoeirada rua, hoje a importante Hermilo Alves.
Aos poucos, o casal construiu uma das primeiras casas do bairro,agora tombada pelo Patrimônio Histórico. Florinda, além dos afazeres de casa e de cuidar dos filhos, colocava a mão na massa e ajudava o marido na construção.
Quem conta a história são as netas do casal, já falecido, Florinda de Souza Nascimento e a Sandra Maria Baeta Neves. “Depois da casa principal construída, nossos avós construíram uma casa para cada um dos 12 filhos. Dindinha (como Florinda era chamada pelos netos) ajudava na construção. Foi assim que nasceu a nossa Vila Ivone, que tem este nome em homenagem à minha tia caçula”.
A Vila Ivone é um cantinho tranquilo, com casas que parecem de boneca. Tudo tão bem cuidado que dá gosto de se ver. Nem parece que estamos em Belo Horizonte.
Elas contam que no lote havia galinheiro, horta e criação de porcos, que contribuíam na alimentação da grande família. “No chiqueiro dos porcos, padrinho (como era chamado o avô) fez uma cerca de madeira. No dia em que ele matava porco, a meninada levantava cedo, subia na cerca para acompanhar. A carne, depois de preparada, como não tinha geladeira, era colocada na lata com gordura e dividida para toda a família. Era tudo compartilhado”.
“Nossa infância e a juventude foram muito boas. Brincávamos de rouba bandeira, pique e vôlei. O padrinho colocou um poste com uma luzinha, fraquinha, mas que iluminava nossas brincadeiras até tarde da noite”, relembra Sandra.
A passagem do Ano Novo era comemorada na Vila. “A gente sempre fazia festa de réveillon. Cada um trazia um prato e ficávamos até que hora. Com o tempo as coisas foram mudando. A família foi crescendo e hoje cada um tem seus compromissos. É o curso da vida”, lamenta Sandra.
Sandra e Florinda têm boas lembranças também do carnaval. “Carnaval sempre fez parte de Santa Tereza. A gente, quando criança, sentava no passeio e ficava vendo os blocos passarem. Me lembro bem do Boca Branca. Quando crescemos, saíamos nos blocos, especialmente na Banda Santa”.
Outra mudança foi o fechamento da Vila com um portão eletrônico. Florinda explica que “com o crescimento do bairro, começaram os furtos na madrugada. Além disso motoristas achavam que era rua e entravam de carro. Gente fazia cocô e até transava aqui por ser isolado. Então colocamos o portão para a segurança das 22 pessoas, todas parentes, que atualmente vivem na Vila”.
Sandra e Florinda comentam que, apesar de Santa Tereza continuar a ser um bairro de certa forma tranquilo, com o aumento do número de moradores e a construção de prédios, a relação entre a vizinhança mudou. “Hoje a gente nem conhece os vizinhos direito, a não ser os parentes. Mas não tem melhor lugar no mundo pra se morar. Saio para outros bairros e não me vejo fora daqui, lugar que gosto demais”, observa Florinda.
Não se pode falar da Vila Ivone sem citar Washington, uma figura inesquecível do local e, acredito, de antigos moradores. Um dos filhos do casal pioneiro, Sandra lembra que “ele era especial, apesar de causar preocupação pra Dindinha, pois era surdo e ingênuo. Pra começar, brincando de jogar pedras, ele perdeu a maioria dos dentes, e desde novo precisou usar dentadura, com a qual nunca se deu bem e passou a ter dificuldade na fala. Era muito prestativo sempre fazia compra pra todo mundo e era o carteiro da Vila. Quando o correio chegava ele entrava gritando e distribuindo as cartas”.
Sandra conta ainda que “todos gostavam dele, não incomodava ninguém, tomava sua cachaça, chegava ia para o fogão fazer sua farofa”.
Uma vez, segundo ela, Washington sumiu por três meses. Informaram que havia alguém parecido com ele em Copacabana. Como boa mãe, ela pegou um ônibus e foi ao Rio. Pergunta pra um e outro e fica sabendo que estava sendo procurado. Então, de carona, Washington voltou. Sandra conta que, “estava irreconhecível, tanto que passei direto por ele na rua, mas com a sensação de que conhecia aquele homem esquisito. Só depois de olhar bem vi que era ele, e o coloquei pra dentro”.
Florinda comenta que “ele era muito ingênuo e as pessoas o mandavam fazer coisas erradas. Em uma dessas acabou sendo preso. E até explicar seus problemas era uma luta para conseguir soltá-lo”.
O músico e morador do bairro das antigas, Renato Reis, que participou da nossa conversa, era grande amigo de Washington, apesar da diferença de idade.
Renato tem boas lembranças: “Ele era atleticano doente e adorava sair no carnaval, especialmente no Bloco das Santas de Tereza, onde vestia uma minissaia e saia feliz por aí, tocando xique-xique com muito ritmo, apesar de surdo. Em um carnaval, acredita que ele conseguiu vender a dentadura para arranjar dinheiro e sair no desfile? ”, conta Renato dando boas gargalhadas.
Outro fato engraçado é relembrado por Renato: “Um dia um cara cismou com Washington. Apesar de ser da paz, ele ficou irritado e disse: vou bater nele. Para nosso espanto ele e abriu a pochete, da qual não se separava. Achei que iria tirar uma faca ou coisa assim. Da pochete sai um ioiô, que ele joga na testa do homem e grita “Matei o cara!”
Outra marca registrada dele era ao contar um caso, com toda a dificuldade de dicção, sempre dizer que era “do princípio ao início”. Ele morreu em 2004, com 69 anos, e foi como ele sempre dizia “do princípio ao início” uma pessoa do bem. Figura inesquecível, o Washington. E os moradores da Vila Ivone, não menos.